Resenha: “O sacrifício do cervo sagrado” é perturbador e pode abalar o seu dia

Lucas Mendes Kater
5 min readDec 16, 2018

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A Grécia antiga exerce uma série de influências nos dias atuais, das mais óbvias às mais sutis. Dali vem, entre outras coisas, toda uma tradição filosófica, artística e cultural que tem raízes firmes no mundo moderno, estando muito presente na nossa língua, por exemplo (afinal, “cinema” deriva do grego “kínēma”, que quer dizer movimento, né?). Mas a tradição mais evidente no nosso tempo, ao lado da filosofia, talvez seja o teatro. Dramaturgos como Sófocles, Ésquilo e Eurípides são estudados até hoje e têm suas peças encenadas e adaptadas constantemente, e isso não deve parar tão cedo, já que eles claramente ainda têm muito a dizer. Não menciono isso por causa do país de origem do diretor de O sacrifício do cervo sagrado, mas sim porque, neste novo longa, Yorgos Lanthimos faz uma adaptação livre e pega emprestados alguns temas da tragédia Ifigênia em Áulis, de Eurípides.

No filme, Steven Murphy (Colin Farrell) é um cardiologista que vive com sua esposa, a oftalmologista Anna (Nicole Kidman), e os filhos do casal, Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). Em paralelo, ele mantém uma amizade no mínimo curiosa com o adolescente Martin (Barry Keoghan) e essa amizade aos poucos vai se revelar manipuladora e nociva. Steven vai ficar preso às vontades de Martin quando sua família começar a adoecer misteriosamente, e a ameaça de uma enorme tragédia só poderá ser interrompida se ele provocar uma tragédia menor mas ainda muito grande. Na peça, Agamenon, o rei de Micenas, enfrenta um dilema semelhante ao se ver obrigado a satisfazer uma vontade da deusa Artemísia às vésperas da guerra de Troia. Há um trecho da obra que estudiosos questionam se foi originalmente escrito por Eurípides, mas a versão mais conhecida envolve um cervo em uma situação muito específica que, se eu contar, vai ser um spoiler brutal do filme.

Se, por um lado, o dilema da peça envolve os caprichos da deusa, o de Steven está mais voltado pra autopreservação. Enquanto o rei grego precisa decidir se protege a integridade de sua família ou se abdica de tudo pra aplacar a birra divina, o médico só pode escolher o menor dos males; ele não tem como sair ganhando dessa barganha que mal consegue compreender. O filme se afasta do fator divino da peça ainda mais ao extrair qualquer chance de explicação. Ninguém sabe o que está acontecendo. Os melhores médicos do país são acionados e não encontram um diagnóstico pra essa doença que avança implacável como um estouro de manada.

Essa incógnita é encarnada por Martin, que está sempre no centro de tudo e manipula todos. O filme faz parecer que ele é o provocador da doença e leva o espectador a tentar ligar os pontos. Ele sabe tudo o que vai acontecer. Como ele está fazendo isso? Será que tem a ver com os presentes que ele dá pra família naquela cena? Esses presentes e outros detalhes alimentam a especulação e levam a crer que ele é a causa, mas as evidências nunca são suficientes. Ao contrário, Martin nunca declara que está fazendo algo e sempre deixa no ar. Em conversa com Anna, ele chega a declarar: “Não sei se o que está acontecendo é justo”. Nessa fala e em todas as vezes em que ele menciona o problema, ele se afasta da condição de provocador e parece tão impotente quanto os Murphy. Talvez ele apenas saiba de tudo. Talvez ele apenas esteja prevendo o que vai acontecer.

Não é à toa que a certa altura ele menciona que seu filme favorito é o Feitiço do tempo, em que o personagem de Bill Murray, o homem do tempo em um noticiário televisivo, vai cobrir o festejado Dia da Marmota. Martin assiste ao filme na companhia de sua mãe (Alicia Silverstone) e de Steven, e um dos trechos que acompanhamos com eles é o que explica a lenda de que, ao sair de sua toca e olhar a própria sombra, as marmotas seriam capazes de prever se o inverno vai continuar ou se a primavera vai chegar mais cedo. De certo modo, a função de Martin aqui é semelhante. Como um bicho que pode emergir da toca a qualquer momento, ele sempre surge de repente no caminho de Steven e joga sua sombra sobre a família trazendo o presságio da tragédia. Nesse sentido, cabe o símbolo clássico do inverno como fim da vida, já que a doença que os acomete, diz ele, é fatal.

Por estar no centro, Martin também personifica o filme em si. O que ele realmente provoca é um enorme desconforto. Barry Keoghan compõe o adolescente com trejeitos instáveis que convencem tanto que é difícil acompanhá-lo sem inquietação. É um jovem claramente perturbado, sua conduta é a de quem está prestes a explodir. E o longa é feito pra causar a mesma sensação. A trilha sonora é abstrata e extremamente dissonante, por vezes emprega sons agudos que quase machucam o ouvido e chega a encobrir as falas em algumas cenas. A câmera sufoca os personagens com frequentes zooms que se aproximam lentamente de seus rostos deixando no enquadramento pouco espaço pra respirar. E, como o desconforto é característico de toda a filmografia de Lanthimos até agora, mesmo quando o zoom se afasta em momentos de alívio, isso acontece dentro daquele contexto em que o menos pior vai acontecer. O alívio é pelo fim do dilema e não porque tudo vai ficar bem.

Além disso, se estou me esforçando pra não revelar muito da trama, é porque a surpresa é relevante. É um filme feito pra causar impacto junto com a inquietação. A própria estrutura do filme pretende ser desconfortável, e um dos recursos usados pra isso é empurrar o que seria o fim do primeiro ato até quase a metade da projeção. Depois de bastante tempo com a sensação de que pouca coisa está acontecendo, o espectador é golpeado por três grandes revelações seguidas e, depois disso, o próximo grande acontecimento vai ser o clímax lá nos últimos minutos do roteiro. É como se os pontos cruciais da história tivessem sido deslocados aleatoriamente, o que dá aquela sensação de que as coisas estão fora de lugar e acontecem rápido ou devagar demais.

Tudo isso é muito calculado, e o roteiro é bem-sucedido tanto por conseguir causar o desconforto quanto ao contar a história eficiente de uma família perfeita que tem sua vida abalada e sua lealdade colocada à prova por uma tragédia brutal. Mas não se trata de sadismo gratuito ou de puro niilismo. As ações são costuradas de modo a parecer inevitáveis e não deliberadas. A própria ideia central deixa isso claro.

O sacrifício do cervo sagrado é um daqueles filmes em que a noção hollywoodiana de jornada e de final feliz é totalmente desconstruída. Como dita a “regra”, os personagens estão em busca de um objetivo, mas será que alcançar esse objetivo leva necessariamente a um final feliz? Se eles precisam escolher entre uma tragédia e uma outra tragédia ainda maior, como dizer que eles estão realmente escolhendo? Extrapolando a “regra”, que também diz que, ao final de seu arco, um personagem precisa ter sido transformado pelos acontecimentos que acabamos de acompanhar, o que acontece aqui é a ruína completa da alma, uma obliteração quase total desses personagens. E, sem um pingo de dó, do espectador também.

Texto publicado originalmente no site Academia do Sofá (atualmente fora do ar).

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Lucas Mendes Kater

Escritor, tradutor e revisor, pós-graduado em Escrita Literária e formado em Letras com habilitação em tradução. Roteirista em formação.