Conto: Via dolorosa

Lucas Mendes Kater
11 min readMay 2, 2020

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Quando anda, cada passo parece de dança, costumam dizer sobre mim. O mundo sabe que o meu corpo foi feito para isso, que todo movimento meu é obra-prima. Para andar, eu tenho que conter a dança, forçar meu corpo a ser ferramenta em vez de arte. Disso todos sabem. Mas o mundo acha que não sinto dor. Como pode se contorcer daquele jeito?, dizem. Acham que dor é obstáculo, que precisa ser superada antes da excelência. Não percebem o quanto é necessária. Sem dor, não se pode sentir cada posição, cada passo de um número, o corpo não diz quando você continua ou para. Entendi muito cedo que a dor é o técnico mais eficiente, o treinador que leva à vitória. Só conhece o topo quem se entende com a própria dor. Foi ela que me trouxe ao meu patamar. Não fosse a dor, eu não seria tão respeitado, não teria tantos anos de carreira. Ninguém saberia quem eu sou, e eu não teria criado esse número.

Eu precisava de uma dupla. Um parceiro capaz de me acompanhar, de seguir à risca o que eu dissesse. Tinha que ser alguém quase do meu nível. Saí à procura, falei com todos os meus contatos, quem tinha qualquer relevância ficou sabendo e espalhou a notícia. Meu nome naturalmente despertou curiosidade. Todos queriam saber o que eu daria ao mundo dessa vez, mas era importante guardar segredo. Sei que não faltou especulação, os poucos detalhes divulgados viraram peças sem encaixe nas teorias mais delirantes. Fui acusado de autoindulgência, disseram que o sigilo era marketing. Besteira, eu não preciso disso e não preciso dar atenção a essas pessoas. Os candidatos só deviam saber o bastante para o teste. Durante os ensaios, o número completo seria reservado a mim e ao parceiro escolhido.

Comecei a receber ligações, e-mails, mensagens por todos os meios. Uma avalanche de artistas ávidos por trabalhar comigo. Precisava analisar uma quantidade de portfólios além das minhas capacidades. Separei um lote ao acaso e comecei o trabalho. Que desgosto. Desde quando o nível andava tão baixo? Como eles têm coragem de fazer isso para uma plateia e ainda filmar e usar como prova de capacidade? Alguns até mantinham seus vídeos públicos no YouTube para a desgraça geral. Um tinha o pé mais pesado que um saco de areia, outro se movia com a graça de um guindaste. Mãos pareciam estapear quem assistia. Não sentia vergonha alheia porque a vergonha dos outros não é problema meu. Mais um lote, mais desgraça. Magro demais ou gordo demais, alto ou baixo demais, coxa muito grossa, físico de escritório, um horror. Mas isso foi erro meu. Devia ter sido claro quanto às características físicas. Joguei tudo no lixo para começar de novo. Dessa vez, deixei bem pontuado para as agências. Os candidatos deveriam ter por volta de um metro e setenta de altura, pesando sessenta quilos. Assim, passei a receber portfólios mais consistentes, quase todos com o tipo físico como o meu, tudo proporcional, nada fora do lugar, o que me dava esperanças.

Recebi o primeiro candidato sem expectativas. Sua conduta confiante não me atingiu. Confiança demais, eu desconfio. Enquanto ele estava no vestiário do meu estúdio, me sentei no meu canto do salão e escolhi mentalmente a parte do número mais adequada e, sem música alguma, não perdi tempo quando o vi na minha frente.

— Fica em pé ali no meio, de frente pro espelho — queria que ele se visse o tempo todo. — Pés juntos, mãos ao lado do corpo. Braços pra trás, mãos abertas, palmas pra cima na altura do ombro — falei com firmeza observando sua postura.

O movimento dos braços dele me animou um pouco, leveza e precisão como deve ser.

— Olho no espelho. Quero um plié… Agora, pé direito pra trás sem tirar a ponta do chão.

A perna esquerda em noventa graus se manteve estável por dez segundos, quinze segundos, vinte segundos, até uma leve tremida percorrer toda sua extensão. Como eu previa, não tinha o nível necessário.

— Levanta o pé direito, calcanhar esquerdo no chão e segura.

A dor redime. Era o teste definitivo, uma chance de compensar a falha anterior. E é claro que não conseguiu. Mandei relaxar e ele ficou em pé voltando a demonstrar a confiança de fachada que trazia quando chegou. Era nítido que ele achava que ainda era o começo, com o olhar fixo no espelho parecia repetir para si mesmo frases de autoajuda que só alimentavam uma esperança vazia. Confesso que o dispensei naquele momento com alguma satisfação.

O segundo candidato veio uma semana depois. Não conseguia nem mesmo encontrar o meio do salão. Hesitava a cada comando. Se eu mandava arrastar o pé para trás, tinha espasmos para todos os lados antes de acertar, o corpo implorava pela minha aprovação. Um após o outro, os candidatos trouxeram sua incompetência para gastar meu tempo. Ninguém era capaz de nada. Quando não eram inseguros demais, eram duros demais. Quando tinham elasticidade, erravam os movimentos. Demonstrar o que eu pedia nunca adiantava. Com frequência precisei intervir como se lidasse com marionetes. A precisão dos movimentos era importante, eu queria a reprodução exata daquilo que eu mostrava porque o número exigia sincronia perfeita. Se eu quisesse o calcanhar grudado no chão, estava pronto para pisar no pé suspenso. Se ordenasse que um pé ficasse em um lugar, forçava a posição correta com minhas mãos. Se sentissem dor, que aguentassem. A dor eleva. Nada me frustrava mais do que julgar um candidato pronto para a fase do teste conjunto e ser obrigado a sair de minha posição para corrigi-lo. Quebrava minha concentração, precisava me preocupar com o outro quando ele é quem devia me seguir, devia ser meu reflexo.

A sequência foi enfim rompida depois de dezenas de candidatos. Recebi um jovem que, muito mais do que confiante, era dono de uma presunção maior do que a minha reputação. Do meu canto, não falei nada, observando de braços cruzados sua saída do vestiário, a camiseta branca recém-lavada era como uma segunda pele. Analisei seu aquecimento com minúcia, impressionado ao vê-lo a postos no meio do salão sem minha ordem.

— De frente pro espelho — giro impecável. — Quero um grand jeté. Sem tomar impulso.

Alguém mais inseguro teria protestado, certamente acharia impossível. Mas aquela soberba à minha frente não se deixava derrubar. Lembro em câmera lenta. A começar pelos pés que pareciam pertencer à quinta posição, em perfeito paralelo, o calcanhar de um beijando os dedos do outro para sustentar a flexão das pernas em um losango simétrico. O pé direito buscou altura e apontou em minha direção como se levitasse, para em seguida o esquerdo empurrar o chão fazendo o corpo alçar voo, as pernas em abertura máxima, apoiadas no ar. Ele deve ter achado que me impressionou com o pouso sutil alguns passos à minha frente, olhos nos meus olhos. Eu precisava abalar toda aquela segurança.

— Agora pra trás e mais alto… Sem impulso.

Como eu gostei de ver a confusão naquele rosto. Ele se concentrou sem questionar e executou o salto de volta ao lugar onde estava antes, dessa vez com menos destreza mas ainda bem-sucedido. Assim que terminou o pouso, o dispensei. Não saí do lugar até que ele estivesse da porta para fora.

Ele certamente não esperava ser chamado de novo, mas trouxe a mesma afetação de antes. Demonstrou surpresa ao ver que eu também me aquecia, inquieto enquanto eu imitava suas posições olhando em seus olhos. Sem precisar de palavras, ele já entendia que não sairia dali sem suar a camiseta branca engomada. Fui para o centro do salão, seguido por ele. Pés e braços em primeira posição, alguns passos ao meu lado seus braços desenharam um círculo como que feito por um compasso com os dedos se encontrando na frente do corpo e os pés traçavam uma reta perfeita no chão, calcanhares colados e as pontas de cada um em direções opostas. Um plié sem sair do lugar, abri meus braços para a segunda posição seguida do movimento reverso até a posição inicial, repetindo a mesma sequência cinco vezes. Ele reproduzia tudo sem falha, me seguiu até a beira do salão, executou o giro e ficamos de frente para o espelho na parede oposta. Tomamos impulso para um grand jeté, dessa vez não me acompanhou, saltando mais alto.

— Na próxima presta atenção no impulso — alertei já decidido a dispensá-lo.

Mas ainda queria me divertir um pouco mais. De volta ao centro do salão, nos ajoelhamos, costas para cima, posição fetal. Ele me olhava com a cabeça baixa, o rosto virado para mim, como se ouvisse algo no chão. Estiquei meus braços para cima e notei que sua elasticidade falhou.

— Fica assim.

Levantei e me coloquei atrás dele, empurrei suas mãos como alavancas na direção que sua cabeça apontava. A dor consagra. Você precisa sentir a posição certa. Percebi seu rosto impassível, ainda de lado, o suor na camiseta deu lugar a quatro manchas vermelhas lado a lado, indo de um ombro ao outro, que se esticaram até que filetes de sangue tingiram a nuca. Larguei suas mãos, alarmado, e ele se levantou.

— Que porra é essa?

Enquanto se contorcia para limpar as feridas com algodão dentro do vestiário, pude ver que o sangue saía de oito pontos que formavam duas linhas paralelas horizontais. Contou que, além da dança, praticava suspensão corporal, as feridas eram os buracos de entrada e saída dos ganchos que o penduravam como carcaça no matadouro. Explicou que tudo era feito por uma equipe profissional, com muito cuidado e higiene, como se eu me preocupasse com sua saúde e segurança. Como o chamei de surpresa, não teve tempo de cicatrizar.

— Tudo bem, você não vai ser chamado pela terceira vez.

Eu não podia contar com ninguém mesmo, o melhor candidato era quase tão incapaz quanto as outras dezenas. Teria que repensar o número e fazer tudo sozinho, mas sem perder a essência original. Ao mesmo tempo, não conseguia me livrar daquela ideia de suspensão corporal, vi todos os vídeos que encontrei no YouTube, as cenas rasgavam meus pensamentos. Os ganchos atravessando aqueles corpos, o fio de sangue que escorre sem pressa enquanto a pele descola como couro arrancado. Tão aflitivo e fascinante, o que me prendia era a expectativa. Essa pele vai rasgar, eu pensava. Assistia àquelas sessões esperando ver alguém despencar sob uma garoa do próprio sangue. Aprendi que a pele humana pode ser forte o bastante para sustentar o peso do corpo, basta que os ganchos tenham espessura e tamanho certos, que perfurem a pele em pontos estratégicos e que o corpo mantenha a posição correta sem forçar demais as feridas.

Tantas horas dedicadas a isso refrescaram minhas ideias, meu número começava a renascer. Foi então que tive a ideia do boneco. Comprei um rolo de barbante e dez metros de tecido de algodão. Cinco pedaços cortados do tamanho de meu tronco, braços e pernas serviram para começar, o barbante fazendo as articulações. Fiz furos nas pontas do protótipo e o amarrei aos meus pulsos, cotovelos, tornozelos, joelhos e pescoço para que me seguisse como um parceiro de tango. Hora de retomar os testes. Fiquei em pé no meio do salão, de frente para o espelho. Pés juntos e mãos ao lado do corpo observando minha postura. Meu protótipo não me abandonava. Braços para trás, mãos abertas, palmas para cima na altura do ombro, sincronia perfeita. Movimento dos braços com leveza e precisão como deve ser. Olho no espelho. Um plié e então pé direito para trás sem tirar a ponta do chão. Minha perna esquerda em noventa graus nos manteve estáveis por dez, quinze, vinte segundos, um minuto. Teste bem-sucedido.

Próxima etapa, o boneco precisava de volume. Recortei mais tecido com meu corpo como molde, dessa vez em pedaços mais largos. Um boneco tridimensional recheado com flocos de espuma, sem cabeça, pés ou mãos. Mais uma vez atei suas extremidades e articulações às minhas e fomos para o centro do salão, de frente para o espelho. Um grand jeté sem tomar impulso. Nossos pés tomaram a quinta posição, em perfeito paralelo, calcanhares beijando dedos para dar sustento à flexão das pernas em dois losangos simétricos. Pés direitos buscaram altura como se levitassem, para em seguida os esquerdos empurrarem o chão, fazendo nossos corpos alçarem voo, pernas em abertura máxima, apoiadas no ar. Pouso sutil alguns passos à frente. Agora para trás e mais alto, sem impulso. Executamos o salto de volta com a mesma destreza, impecável até a decepção me arrebatar. A amarra se desfez do meu pulso direito e nossos braços não estavam mais unidos. De volta ao desengano, mesmo um objeto inanimado era capaz de me iludir. Mas logo vi que não era culpa do meu companheiro. Descartei o barbante naquele momento.

Só havia uma resposta. Se a pele sustenta o peso de uma pessoa, um boneco poderia voar comigo sem medo. Recorri àquele candidato que quase aprovei para o número, aposto que achou que seria chamado de novo ao ver minha mensagem. Mas atendeu ao meu pedido mesmo parecendo frustrado, me passou o contato de uma profissional que, disse ele, era a melhor do país. Marcamos uma reunião em meu estúdio. Expliquei sob o olhar cético da moça que não queria todo o aparato de suspensão, apenas os ganchos, e qual seria sua função em meu número, acrescentando que precisava que fossem ganchos especiais, com presilhas como de alpinismo. Não podia arriscar mais um fracasso. Ela explicou os riscos e cuidados necessários, reprovando apenas meu desejo de nunca retirar as peças.

— Isso não é piercing — alertou. — A pele vai sofrer trauma constante, precisa de um tempo pra recuperar.

Respondi que não importava, eu sabia o que estava fazendo. Acabou se convencendo ao me ver resoluto, então marcamos o dia das perfurações.

Ainda tive tempo para adaptar meu parceiro. Se minha pele aguentaria sustentá-lo, seu pano provavelmente cederia no primeiro giro. Novos pedaços de tecido cortados e a postos no chão com flocos de espuma em cima seguindo o desenho do corpo. Bolei um esqueleto com ripas robustas de madeira, duas consecutivas para cada perna, duas para cada braço, duas verticais paralelas para o tronco. Prendi ao longo delas uma série de parafusos com ilhós que manteriam as argolas para fora do tecido do boneco pronto, em uma disposição prevista para coincidir com meus ganchos. Seu peso ficou ideal, o bastante para que eu sentisse um corpo quase real me acompanhando.

A moça veio no dia marcado com dois assistentes. Os ganchos ficaram como eu imaginava, o brilho cromado do aço inoxidável com a presilha firme ao ser fechada. Armaram a mesa para o procedimento em um canto bem iluminado do salão e me deitei virado para cima. Explicaram que a perfuração que pedi era mesma usada no tipo de suspensão chamado de coma, no qual o corpo é içado na posição em que eu estava, com os ganchos presos na parte da frente do corpo. Seis ganchos em cada perna, seis em cada braço, oito formando duas linhas verticais paralelas no tórax e abdome. Começaram pelo peito, um de cada lado, seguindo até as pernas. A dor conforta. Estava quase anestesiado quando chegaram às coxas, mas as canelas e os braços me reanimaram. Fui tomado por euforia quando me disseram para levantar. A dor liberta. Fui até o centro do salão onde meu parceiro me esperava deitado, moça e assistentes me ajudaram a prender os ganchos nas argolas e se afastaram. Enfim eu estava vivo, quase sentia o boneco respirar. Primeira posição, desenhamos com os braços um círculo como que feito por um compasso com os dedos se encontrando na frente dos corpos e os pés traçando uma reta perfeita no chão, calcanhares colados e as pontas de cada um em direções opostas. Um plié sem sair do lugar, abrimos os braços para a segunda posição seguida do movimento reverso até a posição inicial, repetindo a mesma sequência cinco vezes, vagarosos, sentindo os movimentos. A pele era puxada pelo peso que os ganchos seguravam e pedia mais, cada vez mais. Fomos até a beira do salão, um giro e ficamos de frente para o espelho na parede oposta. Era o que a pele queria, brotar mais sangue. Mais um giro, mais sangue, mais euforia. Fomos em direção ao espelho, mais um giro, pele puxando mais, furos se tornando rasgos. A cada etapa do giro, nossos braços abriam e fechavam da primeira posição para a segunda e de volta para a primeira. A pele queria os braços abertos. Chegamos até o espelho, prazer ofegante. A moça e os assistentes preocupados não sabiam se deviam vir até nós. Voltamos para a beira do salão com mais giros, que a pele exigia sentir. De novo na direção do espelho, aumentamos a velocidade dos giros, pele em êxtase, rasgos maiores a cada puxão. Mais um giro, mais rápido, e mais um e mais um e mais um. Lembro em câmera lenta. Permaneci em pé, o boneco foi ao chão levando meus ganchos sob uma garoa vermelha, moça e assistentes correndo em minha direção. A dor fascina.

Conto publicado originalmente na revista Nateu #1.

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Lucas Mendes Kater

Escritor, tradutor e revisor, pós-graduado em Escrita Literária e formado em Letras com habilitação em tradução. Roteirista em formação.