Conto: Alaor

Lucas Mendes Kater
5 min readDec 16, 2018

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Alaor queria muito ser amigo de Alaor. Não, ele não precisava de tratamento. Ou até precisava, mas não por isso. Ou talvez por isso também. Enfim, estou falando de dois Alaores. Um deles é Alaor Venâncio, ator de novelas esquecidas e filmes obscuros da Boca do Lixo, alguns dos quais só circularam entre os cinéfilos que fuçavam mais no fundo da caçamba e viraram cult nos meios dos profissionais do cinema. O outro é um conhecido meu, grande admirador do ator.

Advogado, veio de Curitiba a São Paulo para realizar seu projeto dos sonhos, um documentário sobre a avenida Paulista com Alaor (o ator) no centro do elenco. Acionando seus contatos, conseguiu criar uma ponte, levou o roteiro para a produtora onde eu trabalhava e o apresentou às minhas chefes, esperando ver aquele brilho nos olhos que enxergam um sucesso em potencial.

— Mas isso não é um roteiro…

— É o começo. E tem o Alaor.

— Você vai precisar de muito mais. Isso aqui é só uma cena com uma fala enorme. Não vai atrair recurso nenhum.

— Mas o Alaor vai.

— Você falou com ele? Ele tá no projeto?

— Eu…

— Olha, quando a sua prima falou que você tinha um projeto promissor, a gente achou que fosse pelo menos uma ideia mais concreta. A gente precisa ter o que avaliar.

— E se eu trouxer o Alaor aqui?

— Traz o Alaor ou um roteiro de verdade. De preferência os dois. Aí a gente conversa.

Depois disso, Alaor passou a frequentar a produtora, sempre chegando com muito entusiasmo, mas sem roteiro nem o outro Alaor. O que ele levava eram histórias e mais histórias. Sempre maravilhado com a cidade, seus olhos brilhavam quando falava da Paulista e de como havia conseguido alugar um apartamento na região. Deve ter me contado umas vinte vezes a piada do casamento que é igual à Paulista, começa no Paraíso e termina na Consolação. Sua fissura com o documentário e com Alaor (o ator) aumentava de tal modo que me vi contagiado e com vontade de trabalhar no filme. Aos poucos, fui entendendo que ele mirou no centro do alvo e bolou um plano para forjar uma relação com o ator. A ideia era despertar nele uma amizade nascida de modo espontâneo, primeiro travando contatos corriqueiros, se tornando um rosto familiar, para então deixar surgir um sentimento real. Porque precisava ser real da parte do ator.

Alaor logo descobriu seu endereço e fez o reconhecimento dos arredores. Passou uma semana frequentando o café em frente ao prédio, mas nunca o viu entrar; cinco dias passeando no parque a uma quadra de distância, mas a extensão dificultava qualquer encontro; um final de semana no bar da esquina foi o bastante, a cerveja não ajudaria em nada. A resposta veio depois de dois dias com um método certamente tirado de algum filme do ator: distância segura, cada dia em um lugar diferente, binóculo, café numa garrafa térmica debaixo do braço e olhos grudados na entrada do prédio. O ator ia todos os dias ao mercado, a poucos metros dali, e Alaor passou para a fase de aproximação seguida de abordagem. Começou a frequentar o mercado, evitando regularidade. Foi um dia, esperou três, foi de novo, deixou passar uma semana, foi de novo. Com essa frequência, seus caminhos acabaram se cruzando. Naturalmente, passaram a trocar acenos de cabeça, que evoluíram para acenos de mão, cumprimentos verbais, e depois a amizade seguiu seu curso. Os dois chegaram mesmo a ficar amigos. Alaor visitava a casa do ator e eles frequentavam um bar onde ambos ficaram igualmente conhecidos pelos garçons.

Não ouvi falar mais de Alaor por dois anos. Eu já não trabalhava mais na área quando a dona da produtora me contou que, em uma madrugada de muito trabalho, ela e a sócia se assustaram com a campainha da casa. Antes que pudessem ver quem era, um fedor já invadia a janela. Alaor entrou com o cheiro e disse estar dormindo na rua havia cinco dias; debaixo do braço, folhas amarrotadas, muito rabiscadas, que dizia ser o roteiro do documentário. Havia se afundado no projeto a ponto de se desligar de tudo; mal se alimentava, se esqueceu de pagar as contas. Chegou ao fundo das caçambas de lixo e encontrou ali a lembrança de sua amizade com Alaor (o ator), quase perdida. Pedia socorro motivado pela manutenção da relação e do projeto. Elas o ajudaram com dinheiro para três meses de aluguel e comida, sob a condição de ver o projeto caminhar.

Um ano depois, eu olho para o balcão em um bar, onde vejo Alaor. Parece ter acabado de comprar suas roupas e carrega uma bolsa a tiracolo cheia, a ponto de seu corpo pender um pouco para a esquerda. Levanto para ir cumprimentá-lo. Ele demonstra entusiasmo, contando que está na curadoria da exposição “Alaor Venâncio: Vida e Obra”, em busca de levantar fundos para o documentário. Oscilo da felicidade pelo sucesso à apreensão pelo histórico, mas tento demonstrar alegria.

— Aparece lá, sábado agora. O Alaor vai.

— Claro, vou tentar ir.

Alaor me dá o endereço, que fica em uma região que conheço, perto do centro da Lapa. Então nos despedimos, ele me dá um abraço apertado demais e eu volto à minha mesa, tentando me recuperar desse breve incômodo.

Toco a campainha da casa em uma rua de pouco movimento. Alaor me recebe com o mesmo entusiasmo do bar, me guiando para dentro e me impedindo de pagar. A entrada leva a um corredor cujas paredes estão cobertas por inúmeras fotos de Alaor (o ator), com cenas de filmes, novelas, imagens caseiras, fotos variadas, em um mosaico perturbador de idolatria. Alaor me leva até uma sala toda branca ocupada apenas por um projetor, e na parede um vídeo do rosto de Alaor (o ator) pareceria uma fotografia se os olhos não piscassem de vez em quando, o que me faz sentir um calafrio espinha acima, até meu desconforto ser quebrado pela voz branda de Alaor me chamando para outro cômodo, avisando que Alaor (o ator) já vai chegar. Entro pela porta em um quarto comprido, pessoas estão sentadas em cadeiras de costas para mim. Há um microfone num pedestal sobre um tablado na frente de uma foto de Alaor (o ator), que cobre a parede ao fundo com o mesmo olhar do vídeo. Alaor entra pela porta da parede à esquerda, repetindo que Alaor (o ator) já vai chegar, para então retornar usando um manto vermelho com um grande A branco no peito, se colocar atrás do microfone e erguer os braços com as mãos abertas, as palmas voltadas para a frente se alinhando com os olhos da foto. A plateia se levanta para imitar o movimento e eu decido me manter imóvel, achando que vão se sentar em seguida, mas logo todos se ajoelham sem abaixar os braços. Lentamente, me viro e, ao sair pela porta, ouço as vozes em coro:

— Alaor está entre nós.

Conto originalmente publicado na antologia de 2018 dos alunos da pós-graduação Formação de Escritores, do Instituto Vera Cruz.

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Lucas Mendes Kater

Escritor, tradutor e revisor, pós-graduado em Escrita Literária e formado em Letras com habilitação em tradução. Roteirista em formação.