Resenha: “A Ghost Story”: melancolia após a morte

Lucas Mendes Kater
4 min readDec 16, 2018

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Se tem uma coisa que não falta no mundo, é história de casa mal-assombrada. É uma tradição que vem desde bem antes do cinema e vai continuar enquanto alguém imaginar mundos sobrenaturais. A noção de uma existência depois da morte é parte integrante e influente de muitas culturas e evidencia um desejo de continuidade. Mas essa continuidade também pode ser um fardo. Uma das ideias mais populares na ficção que lida com isso é a de que um espírito fica preso a um lugar enquanto tem alguma questão não resolvida e os vivos que quiserem habitar aquele lugar que lidem com isso. Por outro lado, o que não é tão comum é contar essa história a partir do ponto de vista dessa assombração. Não é nenhuma novidade, mas não se vê muito por aí, ainda mais com um tratamento diferente como o de A Ghost Story.

Como o diretor David Lowery já fez questão de deixar claro, não se trata de um filme de terror. E, não à toa, quando alguma coisa assusta os personagens, o filme faz questão de não assustar o espectador, e, mesmo quando ele assume seu papel de assombração, a cena se resolve de modo quase conciliador. Aqui, o fantasma tem muito mais a função de representar um conceito do que determinar o gênero, e esse conceito se fecha perfeitamente nessa escolha. Em uma trama minimalista, acompanhamos os altos e baixos do relacionamento de um casal que se muda pra uma casa nova até que C (Casey Affleck) morre em um acidente de carro. A partir daí, vemos seu espírito observando o dia a dia de M (Rooney Mara), que passa a atravessar um luto solitário.

Mas logo fica claro que a solidão de M é secundária e o que interessa aqui é na verdade a solidão de C. Após se transformar em fantasma de um modo simples e bem sacado, C sai do hospital onde M foi reconhecer seu corpo e volta pra casa a pé e já somos apresentados visualmente à condição que vai assombrá-lo até o fim do filme. Seus primeiros passos ao ar livre são mostrados em um plano ultra-aberto que mostra um horizonte amplo e um gramado e um céu vastos, com C ocupando um ponto minúsculo da tela. É um recurso visual básico ampliado pra mostrar que a solidão desse protagonista é muito maior do que um vivo pode conceber. Uma pessoa viva solitária ainda pode ser percebida pelas outras ao redor, mas o fantasma, via de regra, não pode. Entrando na casa, ele é mostrado na sala em uma versão menor e mais convencional do mesmo recurso: plano aberto que mostra o cômodo sem ninguém a não ser por C em um canto. A solidão veio junto e vai se converter em prisão, com a edição cortando pra alguns planos em que ele aparece emoldurado pelos batentes das portas de diferentes cômodos.

Essa prisão é justamente o elemento que evidencia o tratamento não habitual que o filme dá ao gênero. A questão não resolvida que o prende à casa se revela uma obsessão que confere a ele uma humanidade ao mesmo tempo em que não é uma fonte de pavor pra quem vive ali. Ele vai passar o filme todo insistindo nessa sina, não importa o que aconteça ao seu redor. Um jantar em família, uma festa animada, uma tarde solitária; dos eventos mais banais aos mais grandiosos, tudo será pontuado pela obsessão do fantasma, em um eterno retorno da angústia que ele quer sanar. Sempre absolutamente sozinho e raramente interferindo na vida dos vivos.

E essa solidão escapa ainda mais da nossa concepção com a ajuda da manipulação do tempo. O filme rompe a barreira entre a elipse e a passagem contínua de tempo pra mostrar o ponto de vista de C. Em um momento, há um salto cronológico que percebemos pela mudança de figurino e cabelo de um vivo, mas que acontece como a passagem de um plano pra um contraplano, simulando a percepção do fantasma. Pra ele é como se fosse o mesmo momento. Em uma tomada sem nenhum corte, M sai de casa 3 vezes sem voltar e com um figurino diferente em cada saída, enquanto C está o tempo todo enquadrado em primeiro plano e a observa. Pra ela se passam 3 dias, enquanto que pra ele só se passam os poucos segundos de duração dessa tomada, e com isso percebemos que ele também está descolado da percepção de tempo dos vivos. Ele está sozinho no espaço e no tempo.

Tudo acontece em planos longos e sem cortes, com a câmera muitas vezes estática e se sustentando sem que nada aconteça, como se quisesse nos fazer esperar um susto, já que sabemos que estamos vendo um “filme de casa mal-assombrada”. Somadas à trilha sonora minimalista e quase inexistente, essas características tornam o filme lento e arrastado, mas sem esvaziar seu sentido. Pelo contrário, todas as cenas que isoladamente poderiam não dizer nada carregam o peso de cada cena anterior, assim como o fantasma arrasta as correntes da obsessão que não o deixa ir embora de vez, e mais uma vez somos convidados a sentir o que ele sente.

Sempre com a missão de nos manter colados no ponto de vista do fantasma, o filme ainda consegue a proeza de transmitir, com o figurino, uma melancolia profunda apenas através dos buracos dos olhos no lençol. Claro que isso é ajudado por toda a ambientação, mas ainda assim são dois buracos vazios e escuros que ajudam a expressar sua penúria de modo tão eficiente que não é raro sentirmos dó dele. Uma cena específica chega a dar vontade de abraçá-lo e dizer que vai ficar tudo bem. Nós sentimos o peso de seu fardo e embarcamos na obsessão pelo legado que a vida antes da morte impôs a ele. Esse fardo que ele carrega é resultado da vida, e qualquer um é capaz de se identificar. No final das contas, não estamos tão sozinhos quanto ele, mas entendemos muito bem o sentimento.

Texto publicado originalmente no site Academia do Sofá (atualmente fora do ar).

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Lucas Mendes Kater

Escritor, tradutor e revisor, pós-graduado em Escrita Literária e formado em Letras com habilitação em tradução. Roteirista em formação.