Resenha: A ficção científica e a filosofia de “Ex Machina”

Lucas Mendes Kater
4 min readAug 2, 2017

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O tema não é nada novo: cientista brilhante cria ou tenta criar um ser artificial à sua imagem e semelhança, seja pra empurrar os limites da ciência, pra ter uma companhia, ou só porque sim. O dr. Frankenstein tentou isso há muito tempo, só que com raios e trovões e uns nacos de gente de verdade no lugar dos circuitos e de toda a tecnologia que a gente já imagina automaticamente hoje em dia. O desejo criador acompanha a humanidade provavelmente desde sempre e só deve morrer quando a última pessoa morrer. Esse desejo é o tema central de “Ex Machina”, uma ficção científica que curte debater umas ideias e tem um pouco de thriller psicológico.

Caleb, um jovem programador que trabalha em uma gigante da tecnologia chamada Bluebook, é sorteado pra passar uma semana no retiro paradisíaco de Nathan, o intimidador e carismático dono da empresa, que desenvolveu um código de programação revolucionário aos 13 anos de idade. Nathan vive isolado em sua propriedade que tem as dimensões de uma cidade, contando apenas com a presença de Kyoko, uma espécie de governanta e servente. Na primeira conversa, Caleb descobre que vai ajudar Nathan a testar Ava, seu mais recente protótipo de inteligência artificial. Aos poucos, Caleb vai conhecendo o humor tempestuoso de seu chefe e ídolo, se aproximando cada vez mais de Ava por meio de conversas às vezes intimistas e às vezes claustrofóbicas.

Tendo como fio condutor o atrito entre criador e criatura, ilustrado pelas conversas de Caleb, que se alterna entre Nathan e Ava, “Ex Machina” já traz no título uma referência que rasteja logo abaixo da superfície deixando vestígios ao longo da trama toda. O nome vem da expressão “deus ex machina”, que nos tempos das tragédias gregas se referia aos atores que entravam em cena içados por algum tipo de máquina no papel de algum deus que vinha resolver a coisa toda de repente; hoje em dia, o termo se refere por extensão ao mesmo recurso narrativo, mas em qualquer forma de ficção e não envolve necessariamente poderes sobrenaturais.

As relações de Nathan com Ava e com Kyoko são de poder. O criador mantém a criatura presa em um quarto, e ela só pode se comunicar com Caleb através de uma parede de vidro que é tipo uma vitrine pra sua intimidade. Kyoko não fala nem entende inglês e se mostra submissa, enquanto Nathan é capaz de tratar a moça de modo escroto com muita facilidade. Dando consciência e humanidade a uma máquina, o autor leva o espectador a questionar os problemas éticos do cativeiro de Ava, já que ela é ao mesmo tempo máquina e mulher. O roteiro estabelece uma linha fina entre essas condições e se equilibra sobre ela, mas sem ficar em cima do muro, deixando Ava ser humana. Essa linha fica clara na cena em que ela mostra interesse em Caleb, fazendo perguntas sobre sua vida, expressando uma curiosidade humana que parece genuína, mas de modo robótico, mal esperando o fim de uma resposta antes da próxima pergunta.

A dualidade entre o orgânico e o mecânico é incrementada na cena em que Nathan leva Caleb até uma sala onde há uma pintura de Jackson Pollock e explica o processo artístico do pintor: “Ele esvaziava a mente e deixava a mão livre para ir aonde quisesse. Não era deliberado nem aleatório, ficava no meio termo. Chamam isso de arte automática”. E o filme recheia a analogia ainda mais com uma rima conceitual, em uma cena que tem como centro um dos desenhos que Ava faz com seu estilo pontilhado (ou pixelado?) e é seguida por um corte direto pra um plano da pintura de Pollock, que Nathan tinha chamado antes de “o pintor das gotas” (ou pontos? ou pixels?).

Além do pintor americano, o roteiro faz outras referências culturais, sempre de modo orgânico e contextualizado e contribuindo pra formar sentido, como quando explica a origem do nome da empresa de Nathan. A Bluebook empresta o nome do “Livro Azul”, em que o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein trata de linguagem e pensamento e que ganha relevância no filme quando Nathan conta para Caleb como desenvolveu a inteligência artificial de Ava.

Com diálogos bem expositivos e até profundos, mas sem ficar maçante ou confuso, o filme explora uns temas cabeludos que já ocupam a humanidade há muito tempo, colocados em um contexto que não poderia ser mais atual. Todas as discussões ainda dão mais peso aos momentos em que a narrativa visual toma conta, inclusive quando o diretor investe em planos quase estáticos dos rostos dos personagens, que ganham sentido por causa dos diálogos.

“Ex Machina” tem uma história amarrada sem nenhuma ponta solta e usa os temas do gênero pra tratar de temas universais com profundidade e sem se fechar em si mesmo. É um daqueles filmes que estimulam a reflexão ao mesmo tempo em que entretêm e às vezes até perturbam.

Texto publicado originalmente no site All my Stuff (atualmente fora do ar).

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Lucas Mendes Kater

Escritor, tradutor e revisor, pós-graduado em Escrita Literária e formado em Letras com habilitação em tradução. Roteirista em formação.