Cobertura/resenha: 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Lucas Mendes Kater
5 min readDec 16, 2018

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Está chegando a hora de mais uma edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em sua 41ª edição, o evento vai trazer pra capital paulista, de 19 de outubro a 1º de novembro, nada menos do que 394 títulos, entre longas, curtas-metragens e uma novidade: 19 desses curtas farão parte da programação em realidade virtual. São filmes de 59 países que, além de ocupar salas de cinema, também serão exibidos em espaços culturais e museus da cidade, com as já esperadas exibições gratuitas ao ar livre, sem contar a programação itinerante, que o Sesc e a CPFL vão levar pra diversas cidades do interior do estado.

O evento vem desenvolvendo já há algumas edições o hábito de promover um panorama da produção cinematográfica de um país específico, e o escolhido da vez é a Suíça. Serão dois cineastas do país homenageados com retrospectivas, Alain Tanner e Georges Schwizgebel, além da apresentação especial de um telefilme dirigido por Jean-Luc Godard como episódio de uma série nos anos 1980 e uma programação ampla de filmes suíços. Fora do foco Suíça, a Mostra vai trazer ao público as retrospectivas do francês Paul Vecchiali e da mais que consagrada belga Agnès Varda, ambos também apresentando seus novos trabalhos. Pelo jeito, a Mostra esse ano vai ser boa pra quem estuda francês e quer treinar o ouvido.

Varda e Vecchiali, aliás, se inserem de um modo que não poderia ser mais representativo. Primeiro porque essa edição traz 98 títulos dirigidos por mulheres (18 de brasileiras), e a belga também será agraciada com o Prêmio Humanidade, que o evento entrega pra cineastas que abordam questões humanísticas em sua obra. Além disso, o francês é reconhecido como o primeiro cineasta a abordar temas como homossexualidade e Aids em seus filmes. Tudo isso está em sintonia com o filme de abertura, Human Flow — Não existe lar se não há para onde ir, documentário do chinês Ai Weiwei sobre a atual crise dos refugiados. E como se dá essa sintonia? A palavra de ordem aqui é união, o que se resume muito bem na arte do pôster, de autoria do próprio Weiwei. É um aperto de mão que a animação da vinheta ainda transforma em um puxão de ajuda. Uma mão puxa a outra pra dizer “você não está só”. Um aceno de conciliação em tempos de muita discórdia.

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Também em sintonia com a palavra de ordem, está o filme apresentado na cabine de abertura pra imprensa. Ganhador do festival de Toronto, o novo longa de Martin McDonagh (Sete Psicopatas e um Shih Tzu) também se preocupa com questões sociais, ainda que este não seja exatamente o tema central. Em alguns momentos, chega a parecer um exercício temático, já que sempre traz uma fala ou cena que aborda diretamente algum tipo de preconceito. Mas o roteiro nunca se limita a isso e, mesmo que alguns momentos pareçam a princípio apenas jogados ali fora de contexto, eles estão sempre a serviço da apresentação de um personagem e podem trazer consequências imediatas que vão levar a trama pra frente. E essa aparente aleatoriedade que logo se mostra repleta de intenção também serve de vetor pra boa parte do humor peculiar do filme, que surge sempre imprevisto e parece não combinar com a premissa pesada e incômoda.

O filme abre com a protagonista Mildred Hayes (Frances McDormand) dirigindo por uma pequena estrada vicinal que leva à cidade de Ebbing, e a trama toda vai se passar entre a estrada e a cidade. Ao ver três outdoors abandonados, Mildred resolve contratar os serviços da agência que os administra e coloca neles uma mensagem que confronta diretamente o xerife local Bill Willoughby (Woody Harrelson). Nove meses antes, a filha de Mildred foi morta com um pesadíssimo requinte de crueldade e a polícia ainda não encontrou o culpado e parece não estar tentando, então ela usa os outdoors pra ver se agita as águas calmas da cidade e se encontra a justiça. Como em toda cidade pequena, a onda se espalha rapidamente e todo mundo fica sabendo e Mildred não demora pra sofrer as consequências.

Com uma premissa dessa, é de se esperar que a protagonista seja uma mulher de pulso firme e muito determinada em sua motivação. E é exatamente o que vemos aqui; se ela fosse fácil de abalar, não existiriam os outdoors e menos ainda o filme. McDormand sustenta o filme como sua personagem carrega o peso do luto pela filha. Os traços fortes da atriz e sua feição de quem sempre sabe o que fazer parecem levantar uma muralha de proteção que ao mesmo tempo não impede que ela demonstre sua fragilidade, o que normalmente acontece quando não está na frente dos outros. É uma personagem com camadas que talvez não tenham fim e que tem seu arco definido pela revelação de uma nova faceta inesperada atrás da outra.

Não parece, mas tudo isso é temperado com muito humor. Esse caráter inesperado é outro veículo da comédia, e o espectador chega a se pegar rindo alto logo depois de um momento trágico. O roteiro de McDonagh parece querer o tempo todo nos fazer sentir culpa. “Por que eu estou rindo (e muito) disso depois que aconteceu aquilo? Por que eu estou rindo disso que eu sei que vai dar em tragédia?” A conclusão é que o humor e o drama são igualmente eficientes e convivem em harmonia, assim como os personagens, mesmo cheios de diferenças. Existem antagonistas, mas não existem inimigos. O xerife Willoughby não vai tornar a vida de Mildred mais insuportável do que já está. Pelo contrário. Ele é um homem amigável, e os dois claramente se respeitam. O policial Jason Dixon (Sam Rockwell, hilário por si só) é racista e violento e, com o perdão do pleonasmo, bastante tapado e detestável, mas passa muito longe de ser um vilão nessa história.

E essa convivência até certo ponto harmoniosa entre os personagens é o que serve como comentário pras questões sociais em que o filme toca. Em matéria de representatividade, McDonagh faz questão de mostrar que está atento, levantando até mesmo uma questão bem específica de que pouco ou nada se fala nas discussões atuais. Nesse sentido, o filme se equilibra o tempo todo entre a relevância completa e uma certa gratuidade. São questões importantes ganhando o devido destaque. Todas são muito bem costuradas na trama e têm um arco delineado, até mesmo aquela pouco falada, que surge em uma única e curta cena, mas não vem do nada. Mas, ao mesmo tempo, elas são declaradas de modo muito expositivo, como se o diretor e seu cacoete de dramaturgo quisessem dar uma piscadinha pro espectador, e aí fica difícil ignorar que talvez haja um certo oportunismo nisso, por mais tocante, divertido/perturbador e bem escrito que o filme seja.

Texto publicado originalmente no site Academia do Sofá (atualmente fora do ar).

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Lucas Mendes Kater

Escritor, tradutor e revisor, pós-graduado em Escrita Literária e formado em Letras com habilitação em tradução. Roteirista em formação.